O riso vem com um gosto azedo...
Ontem, após assistir esta bela película dirigida
por Pietro germi, tive a impressão de que Germi filmou aquilo com horror – e embaraço.
A Sicília dos anos 1960 que ele mostra é uma
sociedade que apresenta um comportamento bárbaro, apegada a conceitos inexplicavelmente
idiotas, sem sentido, sem lugar no mundo. A saber: mulher que se entregou
(mesmo que por amor) a um homem uma vez sem ter antes se casado é puta, pervertida,
desqualificada. O próprio homem que se envolveu tinha todo o direito de se
recusar a casar com ela. Sem o hímen, a moça tira a honra de toda sua família,
faz com que os seus mergulhem na mais profunda desonra.
A sedução é mostrada de cara, nos cinco primeiros
minutos....
Na primeira cena, aparece uma cruz, numa esquina de
uma acanhada e pobre vila siciliana. Duas mulheres, vestidas de negro de cima
abaixo, caminham ligeiramente pelas ruas. Agnese (Stefania Sandrelli) e a
empregada dos Ascalone, Consolata (Rosetta Urzi). Enquanto isso vai rolando os
créditos iniciais e a voz de um cantor, empostada, antiga, tipo Vicente
Celestino, apresenta o drama.
Diz a letra
da música, que vamos ouvindo enquanto rolam os créditos e a musa Stefania
Sandrelli anda depressa pelas ruas ao lado da criada:
“É uma história que quero contar, a da
austera família Ascalone. Não é fruto da fantasia, mas uma história verdadeira.
A família Ascolone foi ofendida na honra por Peppino, o belo jovem. E Agnese,
toda paixão, foi falar com o padre e contar em confissão para descontar o
pecado.”
Na tela, dá-se inicio a cena que Agnese relata para
o vigário. Na casa dos Ascolone, quase todos dormem a sesta, após um farto
almoço. Na sala, Matilde caiu no sono sentada no sofá. Peppino Califano, o
noivo dela, retira cuidadosamente a xícara da mão da moça, e a leva para a
mesa. Coloca o cigarro aceso no cinzeiro, e se aproxima de Agnese, a irmã mais
nova de Matilde, a noiva adormecida. Agnese estuda, sentada à mesa. Na verdade
ela está ali cumprindo a ordem paterna de tomar conta do casal.
Peppino asquerosa, nojenta. Veste um terno troncho,
com gravata, naquele verão escaldante da Sicília, e por isso tem o rosto suado.
Um bigodinho assombroso. Uma figura triste. Ele pergunta onde está Consolata, a
empregada, a outra única pessoa acordada na casa. Agnese diz que ela está fora,
lavando roupa.
É nessa hora
que Peppino ataca e Agnese tenta se refugiar na cozinha.
Peppino
ataca e Agnese diz não sem vontade alguma de dizer não. Um copo cai no chão.
Peppino espera um momento – o silêncio continua então isso é um sinal de que
ninguém acordou. O macho louco Ataca novamente. Puxa Agnese para o quintal, no
meio das roupas estendidas no varal. As roupas brancas ficam entre a câmara e o
cunhado que ataca a garota de 16 anos.
Ao se confessar com o padre; mais humilhações...
Chamada dos piores nomes por aquele a quem achava que receberia conforto.
O pai da moça, ao saber do fato, tenta evitar o
vexame das maneiras mais estapafúrdias, ampliando cada vez mais o desastre.
Estamos num terreno muito próximo das tragédias morais de Nelson Rodrigues.
Seduzida
e Abandonada Traz à discussão temas como o ridículo, inominável machismo, a questão
da virgindade, da fidelidade eterna e incondicional (das mulheres, é claro). Todos
aqueles costumes primevos, que teimavam em permanecerem vivos em plena década
de 1960, a que mudou quase tudo no mundo.
Com esse filme, o diretor Pietro Germi não apenas achincalha
das grotescas tradições sicilianas. Ele mostra o ridículo delas. Ele as exibe
com horror, com nojo e com constrangimento por elas existirem. No “Extras” do
DVD, em entrevista, Germi declara que Seduzida e Abandonada (...) “É um filme muito curioso. As pessoas que o
viram em sessões privadas tiveram reações muito contrastantes. Alguns saíram
rindo muito, enquanto outros saíram transtornados. Ou seja: é um filme
divertido e perturbador. (…) Eu diria que é uma espécie de cassata à siciliana,
feito de muitos elementos. Boa, mas um tanto indigesta para quem não tem
estômago forte”.
O diretor falou também sobre a sua insistência em
trazer a tona os costumes e tradições sicilianas. Para ele (...) “Na Sicília são exageradas a características
dos italianos em geral. Ouso dizer que a Sicília é a Itália duas vezes. Todos
os italianos são sicilianos e os sicilianos são italianos um pouco mais. (…) No
fundo, creio que gostaria que as pessoas, ao ver este filme, dissessem: que
estranho, rimos muito, mas estamos assustados.”.
Foi justamente o que senti ao ver esse filme. É um
filme que nos faz rir e nos assusta.
Num filme repleto de piadas – em palavras e em
gestos –, há uma que Pietro Germi usou duas vezes, e que expressa muito do que
o realizador pretendia dizer. Por duas vezes, o delegado do povoado diante de
um mapa da Itália, tapa com a mão a Sicília. “Esconde” a Sicília, e olha para o
mapa com uma cara como se quisesse dizer assim: ah, como esse país seria
melhor…
Creio que os
sicilianos não devem ter gostado muito de Seduzida
e Abandonada.
Danem-se
eles. É uma maravilha de filme.