Sou fã de livros epistolares. De verdade. Gosto
porque me sinto parte, mesmo não fazendo parte. Ler as cartas trocadas por
alguém é como espiar por cima do ombro, participar em silêncio. Às vezes
vibrar. 84 Charing Cross Road, livro de Helene Hanff, que, mais tarde,
foi adaptado para o cinema num filme estrelado por Anne Bancroft e Anthony
Hopkins, é constituído única e exclusivamente por cartas. Um punhado delas.
Correspondências curtas que raramente ultrapassam uma página e que foram
trocadas entre 1949 e 1971, por uma escritora pobretona estadunidense (a
própria Helene), e Frank Doel, um livreiro londrino que trabalhava num sebo de
livros raros.
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Foi maravilhoso, à medida que lia o livro poder
perceber o crescimento paulatino desse amor. E também a maneira como os laços
se construíram. Num tempo em que a internet era apenas um sonho distante, em
que a separação continental era mesmo uma distância continental, Helene fez
amigos que nunca viu e graças a seu humor particular (ela ficava brava, mas de
mentirinha, quando não encontravam um livro que ela procurava) e a seu amor aos
livros (achava mágico o toque, a textura e as linhas) encontrou pares e seres
humanos.
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Tudo começa quando Helene responde um anúncio que
viu num jornal. A gente sabe disso não por causa de uma introdução, mas porque
a primeira carta remetida por ela começa assim. É agradável observar como todo
aquele cerimonial do inicio se esvai ao longo dos anos (sim, anos, porque
aparentemente o que dizem sobre a reserva dos ingleses é bem verdade) e também
como Doel se fez presente na vida de Helene e vice-versa. O amor – dá pra
chamar assim? – é genuíno, mas sempre espirituoso, respeitoso e implícito.
Frank Doel é casado. E Nora, sua esposa, também acaba, em determinado ponto, se
correspondendo por Helene. O amor que vemos não é romântico, não é idealizado.
O amor que assistimos nascer é um laço de ternura que nunca é nominado, mas que
está presente entre as linhas.
Além do fator humano, evidenciado por comentários
breves e contidos – e também por presentes enviados por ambas as partes, o
contexto político e social em que as personagens (personagens?) estão inseridas
se evidencia. A crise que a Inglaterra do pós-guerra passava, assim como o
racionamento de comida, surge como assuntos corriqueiros (nunca expostos pelos
ingleses, mas abordados por Helene); da mesma maneira com que esse tipo de situação
é contornado pelo tempo. O tempo, aliás, está sempre presente. Conforme a
amizade de Doel e Helene cresce, ela tenciona viajar para enfim conhecer a
livraria e todos os lugares que seus autores favoritos mencionavam em suas
obras. A imaginação corre solta, e Helene pede, também por carta, que amigos
americanos descrevam como é a livraria e as pessoas que lá estão. O terreno,
tão idealizado, vira mais do que um sonho. Vira objeto de desejo. Porém
necessidades maiores (arrumar uma casa após ser despejada, pagar o dentista
e/ou ser demitida) fazem com que ela adie indefinidamente seus planos. Não é preciso ser gênio para matar, muito antes do
fim, o que vai acontecer. O encontro idealizado não acontece. E os dois amigos
nunca chegam a se conhecer. E se isso não chega a ser uma surpresa, a maneira
com que acontece é. E há emoção pela crueza, e, por que não, pela leveza com
que tudo é comunicado. Talvez alguns leitores possam pensar 84,
Charing Cross Road é monótono, ou apenas um casal de pessoas correspondente
sobre leitura. Aqueles que se divertem encontrarão uma espirituosa série de
cartas sobre a alegria de livros antigos, a interação das culturas americanas e
inglesa e o desenvolvimento de um amor sublime entre Hanff e Doel, que chegou
ao ponto de ser compartilhado entre si e para seus amigos e familiares.