É terrível constatar que as mazelas de um regime
totalitário conseguem, em muitas pessoas, deixar marcas, feridas que jamais
cicatrizam. O visivelmente inexaurível baú de histórias sobre a ditadura na
argentina entre os anos 70 e 80 ganha uma carregada e digna discussão na película
“O dia em que eu não nasci”.
O filme narra a história da jovem Maria Falkenmayer
de 30 anos, que vive com o pai, Anton na Alemanha. Ela faz uma viagem à América
do Sul. Esperando no saguão do aeroporto de Buenos Aires por sua conexão para
Santiago do Chile, Maria ouve uma canção de ninar. Para seu assombro, ela, que
não fala e nem nunca havia falado espanhol, começa a cantarolá-la, despertando
uma lembrança triste.
Muito perturbada, ela faz uma pausa nos seus planos
iniciais de viagem e resolve conhecer mais sobre a capital argentina, onde uma
jornada de angústia está começando. Ela descobre que furtaram seu passaporte e
tem que ficar ali alguns dias à espera do novo documento. Quando seu pai é informado
do incidente, tem uma reação explosiva e desembarca em Buenos Aires, no hotel
em que a filha se hospeda. O cordato Anton, depois de ver a filha angustiada
por perceber que possui muitos elos com Buenos Aires, acaba por confessar que mentiu
a vida toda para Maria. Na verdade, admite Anton, ela não é sua filha
biológica. Foi adotada por ele e pela mulher, Liliana, já falecida, quando ela
tinha três anos, e seus pais biológicos desapareceram na repressão da ditadura
militar.
Na época, o casal alemão morava em Buenos Aires.
Liliana, mulher de Anton, trabalhava na creche da empresa em que Anton e o pai
de Maria também eram funcionários. Um dia, ninguém apareceu para buscar a
menina, a quem Liliana era muito apegada. Pouco depois, souberam que os pais
haviam sido presos. Em seguida, o casal voltou à Alemanha, levando Maria.
Esta é apenas uma pequena parte da verdade. A outra
parte, Maria vai descobrir averiguando por conta própria, já que Anton está
firme na decisão de não ajudá-la a encontrar possíveis familiares que possam
ainda viver na cidade, embora ele fale espanhol e ela não. A sorte a ajuda a
encontrar, pela lista telefônica, seus tios verdadeiros, com quem ela tem um
encontro em que a barreira linguística é superada pela identificação imediata
da imagem de Maria às fotos de sua mãe – de quem nunca mais se teve notícia,
bem como do marido.
Habilmente, o diretor vai descortinando esta
dolorosa desconstrução da identidade de Maria com um emocionalismo contido,
traduzido quase sempre apenas pelo expressivo rosto da atriz Jessica Schwarz. A
câmera colada no seu corpo, que caminha obsessivamente pelas ruas de Buenos
Aires e nada numa piscina pública, onde lava suas lágrimas, igualmente
testemunha seu abalo emocional, pelo desmoronamento de tudo o que ela pensava saber
sobre si.
Um detalhe curioso é o relacionamento de Maria com
um policial, Alejandro, que fala alemão e, por isso, torna-se uma espécie de
guia para ela. Ocultar a ocupação de Alejandro num dia em que ele a acompanha
como tradutor à casa da tia é apenas mais um capítulo desse jogo de verdades e
mentiras que Maria joga com a realidade imediata, que tão mal lida com o
passado próximo. Também Alejandro não quer perguntar ao próprio pai, policial
igualmente, o que andou fazendo durante a ditadura argentina.
Maria e sua tia, no entanto, querem saber mais
sobre tudo. Especialmente quando fica claro que Anton pode ter agido de forma
desonesta e criminosa na adoção da menina. Nitidamente, este é um momento de
sentimentos divididos para os dois lados, especialmente quando a tia quer o
apoio de Maria num processo civil e criminal contra Anton, que a tia considera
como um sequestrador.
Vencedor de vários prêmios, o filme de Cossen não
deixa de tecer, nas entrelinhas, uma referência aos fantasmas de todos os
autoritarismos que existiram e outros que ainda existem.