domingo, 12 de dezembro de 2010

"Viagens", o mais belo dos filmes




É o mais belo dos filmes - mas antes é preciso devolver à palavra belo seu significado mais intenso e profundo. Nos últimos anos temos visto uma banalização do conceito do belo. Não há nada menos banal do que Viagens, o belo filme de Emmanuel Finkiel, distribuido pelo selo Filmes da Mostra. Viagens já foi exibido na Mostra Internacional de 1999, integrou a programação do Festival do Cinema Judaico de 2000 (passando numa seção sugestivamente chamada de Memórias). Ajuda bastante dizer que o diretor Finkiel, de 38 anos, foi assistente de Jean-Luc Godard e Krzysztof Kieslowski. Tomou com esses homens lições de arte e vida que foram fundamentais para o desenvolvimento do seu conceito de cinema.
Finkiel conta que tudo começou há quinze anos, quando ele recebeu o César, o Oscar da França, na categoria de curta-metragem, por um filme intitulado Madame Jacques sur la Croisette. Sim, a Croisette do título é aquela de Cannes, um dos lugares mais famosos do mundo, como palco e cenário do mais badalado de todos os festivais. Só que não há mundanidade nenhuma no passeio de Madame Jacques pela Croisette. É uma judia da Europa Central. Uma sobrevivente - do racismo, do genocídio, do holocausto. Nem toda a dor do mundo tirou o entusiasmo de viver dessa mulher.
Finkiel apaixonou-se por Madame Jacques. Sempre pensou em expandir, senão exatamente sua história, pelo menos histórias parecidas, de mulheres da mesma geração, para um longa-metragem. E foi assim que surgiu Viagens. O próprio diretor afirma que a jornada do filme, partindo da Polônia e passando pela França até chegar a Israel, é emblemática daqueles judeus poloneses da Europa Central que perseguiram seu sonho de liberdade. "A geografia é filtrada pelo olhar, o que importa é a paisagem interior", diz o cineasta.
Sua avó era uma judia da Polônia. "Pertencia a uma geração indestrutível, que nunca se abateu nem perdeu a força de viver." Foi assim que, inspiradas na sua figura e também em Madame Jacques, começaram a tomar forma as histórias (e as mulheres) de Viagens. O filme tem a forma de tríptico. Conta três histórias - as de Riwka, Regina e Vera. A mais emocionante de todas é a última, de Vera, interpretada por Esther Gorintin. Finkiel conta que, sem a personagem de Vera, o filme não existiria. Mas Vera só poderia existir na tela se ele encontrasse a atriz perfeita para o papel. Procurou na França, na Polônia, em Israel. Testou dezenas de atrizes. Já estava desistindo quando foi fazer um teste para figurantes. Descobriu Esther Gorintin. Passada dos 80 anos, ela não era atriz, nunca tinha representado na vida, mas ele viu nela, imediatamente, a sua Vera. "Nunca tivemos problemas no set, ela tinha a vivência o physique du rôle; não era Vera, no sentido de que aquela não era sua história, mas ela a compreendia, como nenhuma atriz o teria feito; foi sempre maravilhosa."
Produzido por Yael Fogiel, da produtora Films du Poisson, Viagens foi exibido no Festival de Cannes de 2000, integrando a programação da Quinzena dos Realizadores. Adquirido para distribuição pela empresa MK2, de Marin Karmitz, estreou nos cinemas franceses debaixo dos maiores elogios da crítica. Cahiers du Cinéma, Libération, Télérama, Le Monde, Positif - não houve uma só voz discordante. O repórter conta para Finkiel que um dramaturgo brasileiro escreveu que toda unanimidade é burra, mas o próprio Nélson Rodrigues, pois é dele que se trata, haveria de descobrir as qualidades dessa obra de exceção. O público aderiu. "Não foi um blockbuster, mas na sua modéstia o filme teve um resultado bastante digno." Finkiel usa a expressão 'honorable', honroso. Viagens fez mais de 150 mil espectadores em Paris.Ele considera esse resultado milagroso, mas diz também que cria uma dificuldade. "Fiz o primeiro filme com o coração, agora sei que haverá expectativa e cobrança pelo segundo." O efeito pode ser paralisante. Finkiel vai assumir o desafio. Está começando a escrever o novo filme. Jours Simples baseia-se num fait divers, não necessariamente ligado à crônica policial. "Não será um thriller", adverte o diretor. Sobre a abordagem do holocausto em seu filme, diz que não considera o tema intocável. "Cada geração tem de produzir o próprio enfoque", avalia. Acrescenta que tudo é válido, até o humor, mas fica em cima do muro. "Não vi A Vida É Bela, do Benigni."Embora tenha apenas 38 anos, durante 16 ele trabalhou como assistente. Foi assim que conheceu Godard e Kieslowski. Um dia alguém lhe falou que Godard precisava de um assistente. O filme era Nouvelle Vague, com Alain Delon. Finkiel assumiu a função e deu-se bem. Foi assistente de Kieslowski nos três filmes que integram a trilogia das cores - A Liberdade É Azul, A Igualdade É Branca, A Fraternidade É Vermelha. Disse que foram experiências decisivas, maravilhosas. Com Kieslowski, foram dois anos de convivência. Conta que nenhum assistente pode ter a pretensão de querer ensinar alguma coisa a artistas desse porte. "Mas pode-se contribuir", diz. Godard chegou a rodar um plano do filme do jeito que Finkiel sugeriu. Não só rodou como utilizou-o na montagem final. Para Finkiel, não há outra definição possível para esses dois homens - "Visionários", ele diz. O repórter conta sua experiência com Godard, no Festival de Veneza, no ano de Alemagne, Neuf Zéro. "Um filme maravilhoso", segundo Finkiel. Na entrevista no Lido, Godard tremia. Chegava a ser chocante ver um dos maiores diretores do mundo, o grande revolucionário da linguagem e da política, tremendo daquele jeito, como se estivesse inseguro. "Você nunca o viu em suas explosões", observa Finkiel. Diz que Godard é o paradoxo encarnado - hipertímido e, por isso mesmo, inseguro.
Ninguém, como Godard, consegue tirar partido da falta de condições. Com qualquer coisa, ele constrói uma coreografia da câmera, do ator. E improvisa bastante - embora o improviso de Godard seja minuciosamente preparado, diz Finkiel. "Aprendi muito com ele sobre a utilização da luz." Com Kieslowski, as lições foram de outro tipo. "Era intimista até o limite da metafísica, suas narrativas eram rigorosas, estabelecia regras e não se afastava um mínimo." Kieslowski gostava de referir-se a Alfred Hitchcock, o mestre do suspense que planejava tanto seus filmes que dizia que, para ele, filmar era passar o roteiro pela câmera.
Kieslowski controlava tudo, especialmente a montagem. Sabia o efeito que aquilo que filmava teria no produto final, mas se fosse preciso cortava até achar o tom, o ritmo. Não admira que, com esses mestres, Finkiel tenha feito um filme exigente como Viagens, nos antípodas do cinema-diversão. Ele aproveita para estabelecer seu conceito de divertissement. "Quando vou ver um blockbuster, impressiono-me com a técnica, mas logo me aborreço com o simplismo da dramaturgia." Prefere divertir-se com Yasujiro Ozu, com Robert Bresson, que estimulam seu intelecto. Quis fazer um filme denso, complexo, rico. Acha que é possível fazer isso sem propor nada de tedioso para o espectador. "Eu também detesto me entediar no cinema", resume.

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