sábado, 27 de novembro de 2010

A Excêntrica Família de Antônia - uma reflexão





“A Excêntrica Família de Antonia”. Excêntrica, como um pouco de cada um de nós. E não somente de Antonia. O caráter da obra é universal, como se a epopéia da matriarca que a batiza fosse uma metáfora para a existência de cada um de nós. Especialmente uma metáfora para o universo feminino, mais acolhedor que o masculino, capaz de criar com naturalidade um “círculo de cuidado” e vínculos de afeição englobando as personalidades mais díspares e controversas, em relativa harmonia. Mas não gostaria de me ater simplesmente à descrição ou resumo da obra citada. Após o desenrolar do filme, temos em nós despertado um impulso reflexivo. Após assistir de camarote ao desenrolar de tantas vidas gerações adentro, somos tentados a nos localizar no complexo mapa do mundo. Qual seria o rumo de nossa jornada? Haveria uma bússola? Haveria um final? Seríamos meros “navios no mar revolto”, tentando sobreviver e nos reconstruir a cada tragédia? Todos esses questionamentos não seriam o próprio “coração” da nossa existência, afinal? Porque afinal... Antonia, seus familiares e amigos, todos eles, não buscavam um sentido para suas existências. Viviam. Momentos houve nos quais alguns deles se questionaram acerca de escolhas alheias e próprias, especialmente as mulheres. Tragédias colocam nossas escolhas na berlinda...Mas estoicamente, as personagens perseveraram nas suas escolhas. Os homens (retratados, de forma geral, como seres quase inanimados, autômatos insensíveis e impulsivos) na sua rudeza banal, hermética. As mulheres, heróicas na sua luta contra uma existência prosaica e prostradora, encontrando seus caminhos em meio aos destroços, reconstruindo-se na solidariedade mútua. Sobrevivendo. Não notei na obra o que classificaria de “artesanato da personalidade”. As personagens “nascem prontas”, e se definem independentemente do relacionamento entre si. Parecem mesmo “tipos ideais”, embora de um caráter bizarro, surrealista. Acredito que seja fruto de um exercício autoral, que represente uma alegoria, um elemento de “Realismo Fantástico” na obra. Acho que uma análise mais “realista” da construção das personagens poderia ter contribuído para aprofundar o sentido da obra. No entanto, se levada a cabo, essa iniciativa poderia ter tornado a obra deveras mais extensa e conferir a esta ritmo mais reduzido. E, afinal, não é a ação o que mais importa. A obra é centrada no plano do discurso. As vidas das personagens tornam-se narrativas e mesmo “manifestos” de alguma espécie. Cada um defendendo seu estilo de vida, impondo-se frente aos demais. Não há menção gratuita à “família” de Antonia no título da obra – ela localiza-se certamente no plano do privado. Relações societais (incorrendo na interdependência entre as personagens e numa “criação contextual” da personalidade) são deixadas em segundo plano. Os vícios privados não convertem-se em virtudes públicas, sequer há esfera pública significante na obra. Os indivíduos (melhor dizendo, as mulheres) são e o são com relativa independência do mundo exterior e dos demais seres humanos. Creio que esse detalhe – não necessariamente um ponto de vista louvável – passe despercebido para muitos analistas. Acredito que o “fio condutor” (argumento) do filme seja: a existência é um exercício de Estoicismo. Devemos perseverar nas nossas escolhas, ser o que somos, a despeito das adversidades. Não podemos conseguir tudo (as tragédias do filme dizem muito a respeito), mas se perseverarmos, conseguiremos o necessário. Reconstruindo nossa nau a cada novo naufrágio, manteremos seu espírito original, reforçado a cada momento. Não concordo por completo com o argumento do filme, tal como a vislumbrei. Acredito que este esteja imbuída de uma certa “moral liberal-capitalista”, retomando a imagem do “self-made man” ianque com nova roupagem. Os indivíduos, no Liberalismo clássico, são o que são por si só, unindo –se aos demais havendo convergência de interesses (no caso do filme, pode-se fazer analogia com a rede de solidariedade feminina, em resposta à opressão masculina). Não havendo interferência externa (isto é, sendo independentes) os indivíduos levam suas vidas da melhor forma possível. Percebo resquícios dessa “utopia liberal” a cada tragédia do filme – sinto que as personagens percebem o mundo (os homens) como uma sucessão de interferências irracionais na sua vida particular, racional e ordenada. Não vejo qual papel o filme reservaria à sociedade com sua esfera pública, debate, diálogo, conflitos de interesses, mudanças, turbulência – tudo é resolvido, com o passar dos anos, como que seguindo as estações (“tempo da Natureza”), na esfera do privado, na qual localizamos o “locus” feminino na “vida real”. Entendo que haja preocupação de denúncia por parte da autora, preocupada com a condição feminina na “vida real”, que conduz a nítida idealização feminina ao longo de toda a obra e certo desprezo aos homens. Não reputo que seja um elemento por demais problemático, nesse sentido. Minha crítica centra-se no âmbito da obra e na ambição da mesma. Não creio que tudo possa ser resolvido na esfera do “privus” nem creio que, uma vez querendo algo, conseguiremos alcançar esse algo a despeito de tudo o mais. O “otimismo liberal” tem limites e acredito que sejamos construídos em nossa interação com o mundo e com nossos “outros”. Temos limites, nossos e os que o mundo e a sociedade nos impõe. Até a Razão Pura de Immanual Kant tem seus limites. O “projeto iluminista” que permeia a obra, enfim, revela suas limitações e acaba por comprometer a pretensão de universalidade da mesma. O “lado escuro” da história – os homens – também merecem ser ouvidos e tomados com dignidade, a despeito de toda a brutalidade. E muita coisa, senão tudo, pode ser mudado. Tanto na esfera privada quanto (principalmente) na esfera pública, na qual Hannah Arendt localizava a essência do Humano – a Ação, criação.

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