quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Eternamente "Amarcord"





Como estou de férias da faculdade, me sobrou muito tempo para fazer o que eu mais gosto nas folgas que é assistir a bons filmes. Ontem à noite resolvi rever (tenho feito isto há semanas), um filme que vi há dois anos. “Amarcord” (no dialeto da cidade do diretor do filme, “Amarcord” significa, eu me lembro), produzido e dirigido por Federico Fellini em 1973. Este é um filme tão primoroso, tão comovente, tão formidável, que de algum modo, ajudou a mudar a vida de muitas pessoas, que viam o cinema como algo afastado, inalcançável, escrito com aquelas letras brancas e gigantescas de Hollyood, e que agora podiam vê-lo como um simples desfilar de lembranças de um italiano tão biruta quanto genial. Para mim foi um achado mesmo que tardio. Não tive o prazer de assistir a essa bela película em uma sala de cinema, pois a minha geração, que é a geração do multiplex nos shoppings, não experimentou estas grandes sensações, ao contrário; tivemos a tristeza de ver grandes salas de cinema ser fechadas por falta de plateia. Então, assisti a "Amarcord" na sala da minha casa, antes mesmo de ter assistido a "A doce vida", "Oito e meio", "Noites de Cabíria", "Julieta dos espíritos" e aos demais filmes de Fellini, que só vim a assisti anos depois. E pior: se me perguntassem, há uns quinze anos atrás, o que era neorrealismo italiano, eu não teria a menor idéia. Rosselini? Visconti? Vittorio de Sica? Alberto Lattuada? Quem eram esses caras? Dá pra garantir que, "Amarcord", funcionou como uma centelha repentina, como uma luz viva, que me obrigou a contrair as pupilas e enxergar o cinema com outro olhar. Mas o que "Amarcord" tem de tão fantástico? Primeiro é preciso dizer o que não tem. Porque, apesar de naquela época (lá pelos anos 1997), ser um adolescente um pouco “distraído das ideias”, já tinha intimidade com a narrativa cinematográfica, já sabia, por exemplo, que um bom filme tinha que ter artistas talentosos que caíssem na simpatia do público, quase sempre formosos, muitas vezes deuses e deusas que desciam do paraíso apenas para filmar nos estúdios; uma história com começo, meio e fim, capaz de emocionar ao espectador segundo uma progressão cuidadosamente planejada; personagens fortes, divididos entre "mocinhos" (para quem torcíamos) e "bandidos" (a quem odiávamos). "Amarcord" não tem atores distintos. Mais do que isso: tem vários não atores, gente comum, escolhida na rua pelo seu tipo físico. "Amarcord" não tem história com princípio, meio e fim: além de fragmentada, a narrativa nem sempre é realista, pois está baseada em lembranças esparsas, imaginações, sonhos do seu diretor. "Amarcord" não tem mocinhos nem bandidos. O personagem principal, um adolescente chamado Titta, não está envolvido em nenhuma guerra espetacular, a não ser que consideremos sua incursão entre os seios enormes da balconista do armazém uma guerra espetacular. "Amarcord" não segue o padrão do cinema americano. Segue o padrão de Fellini. Em contrapartida, "Amarcord" tem uma coleção completa de signos cinematográficos da mais alta qualidade. Tem um roteiro que "amarra" a trajetória de Titta com total segurança, criando nexos entre as cenas e dando a cada novo personagem (e são muitos) uma significação única e sempre forte. A mulher mais gostosa da cidade ("La Gradisca"), o vendedor ambulante, o acordeonista cego, a imensa charuteira, a freira anã, todos eles, mesmo com pouco tempo na tela, estão vivos, palpitantes, verdadeiros. Os roteiristas Tonino Guerra e Fellini sabiam que simplesmente "listar" lembranças não seria satisfatório: era preciso criar uma correlação lógica, em que a passagem do transatlântico funciona como um ápice, um orgasmo coletivo dos habitantes do pequeno povoado costeiro. "Amarcord" também tem uma das mais belas trilhas da história do cinema. Não estou falando de uma música, de um momento específico do filme. Estou falando da trilha original inteira, criada por Nino Rota. Todas as músicas, além de apoiarem a imagem com total eficiência, funcionam independentes do filme. E isso é muito raro, quase inexistente. "Amarcord" também tem fotografia inspirada, montagem sensível, direção de arte irrepreensível. "Amarcord" é, à primeira vista, um filme simples, quase bucólico, mas, na verdade, é um concerto, em que cada um dos instrumentos cumpre com humildade seu papel. É a soma de todos esses tons que fornece a essência quimérica do produto final. Finalmente, não dá pra esquecer que "Amarcord", ao mesmo tempo em que é um filme intimista, sobre um garoto que descobre a si mesmo, também é um filme político, sobre o fascismo na Itália, sobre a alienação de um povo, sobre a preguiça latina, sobre a acomodação dos seres humanos a normas imbecis, estabelecidas por homens igualmente imbecis, porém muito influentes capazes de criar os eficientes signos fascistas e gerar líderes déspotas, monstruosos e nefastos como Mussolini. "Amarcord" não será esquecido jamais, nunca sairá de moda, nunca parecerá velho. Eu me lembro de "Amarcord". Eu me lembro daquela sessão que improvisei na sala da minha casa. Eu lembro que os seres humanos são capazes de criar emoção com uma tela branca e um projetor. E gerar artistas capazes de influenciar gerações por vários séculos como Fellini.

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