quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Na noite do ventre, o diamante - Moacyr Scliar


Reza a lenda que, em Jerusalém, um sapateiro judeu chamado Ahasverus cruzou com Jesus Cristo, por quem foi condenado a vagar pelo mundo sem caminho certo e sem morte, até a Sua volta. No livro de Moacyr Scliar, Na noite do ventre, o diamante, o mito do “judeu errante” é transportado para a própria pedra preciosa, que serve à narrativa como um poderoso símbolo de maldição, de vaidade, de medo, uma representação das agruras e venturas do povo judeu.
Guedali Nussembaum — brasileiramente batizado de Gregório — era uma criança na Rússia às voltas com a Revolução de 1917. Sua pobre família, em busca de melhores perspectivas, resolve partir em fuga para o Brasil, imaginário de novos começos. Mas os perigos da viagem logo impõem o problema de esconder a única riqueza da família, um anel com um diamante solitário há muito herdado. Os pais decidem que Gregório, filho mais velho, engolirá a pedra, enquanto Dudl, seu irmão, o anel. Gregório, entretanto, fica com diamante preso em uma pequena cavidade de seu intestino, e descobre que na verdade engoliu uma maldição.
Narrador hábil, Scliar faz sua pedra passear de uma remota vila brasileira em 1662 até a Europa — onde encontra Gregório — e de volta, como em busca de si mesma. Numa viagem pelos mitos que ligam tesouros e pedras preciosas a maldições, o autor, repetidamente, submete o leitor à questão: o que se pode fazer com diamantes? E não se arrisca a dar muitas respostas prontas.
O livro, de leitura fácil, prazerosa, é recheado de referências históricas e culturais, e consegue misturar filosofia, inquisição, medicina, Brasil, Holanda, rivalidade entre irmãos, e tudo isso sem que o leitor se sinta pressionado pela enorme volta que deu. Menções são feitas a figuras como Pe. Antônio Vieira e Andreas Vesalius, o chamado pai da anatomia. Sem falar que Scliar transforma o filósofo Spinoza, com suas heresias racionalistas, em personagem, e lhe empresta algumas das mais belas e profundas passagens da obra.
Um dos cinco livros da coleção Cinco Dedos de Prosa da Objetiva, Na noite do ventre, o diamante representa o anular, talvez o mais vaidoso dos dedos, aquele que se “veste”. É no anular, por exemplo, que se usa a aliança de casamento. Mas aqui a aliança é de sangue, é ancestral, e de forma muito significativa é engolida, ou seja, literalmente interiorizada, como se lançasse a pergunta: como é que nos livramos daquilo que é mais profundo em nós?

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