quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Cinema Iraniano e o Islã

















Por Kelen Pessuto*



Apesar do cinema ser uma forma de expressão tão controlada pelas leis que governam a República Islâmica do Irã, ele é um meio de nos fazer refletir sobre o Islam e o modo de vida dos muçulmanos. Mesmo levando em conta que cada filme tem por trás o olhar do diretor que o realiza, não podendo ser um documento fiel da realidade, mas pelo menos, é uma forma de entrarmos em contato com esta sociedade tão diferente da nossa. Que nos fascina, ao mesmo tempo que assusta. O Irã é um país Islâmico, de maioria xiita, que são em torno e 93%. A palavra árabe Islam significa "submissão". É derivada de uma palavra que significa paz. No contexto religioso, significa total submissão à palavra de Deus. Na sociedade Muçulmana, a religião é um código de vida geral que rege todos os campos: o político, o cultural, o financeiro e o social. Todos os princípios da religião Muçulmana são os mesmos, o que existe são interpretações diferentes, que originam ramificações, como os xiitas, sunitas, wahabita. Elas surgiram depois da morte do profeta Muhamad.
Segundo os muçulmanos, o Alcorão são palavras que Deus - Allah - revelou ao profeta Muhamad , por intermédio do anjo Gabriel. Por quatorze séculos, nenhuma palavra do Alcorão foi mudada. Para os muçulmanos não há separação entre Estado e a Religião, todo o código de vida está baseado no Alcorão. Ele trata de "todos os assuntos relacionados com os seres humanos: Sabedoria, doutrina, rituais e lei. Mas o seu tema básico é o relacionamento entre Deus e suas criaturas." A história do Irã é marcada por disputas que acontecem desde a Antigüidade. Mesmo quando ainda era a Pérsia, que foi habitada por povos arianos (medos e persas) desde o século IX a.C.. Em 539 a.C., Ciro, líder dos Persas, tornou-se rei dos dois povos, iniciando a Dinastia Arquemênida (de Arquêmenides, antepassado de Ciro), que estendeu seus domínios por uma vasta região do Oriente Médio, formando o maior império da Antigüidade Oriental, abrangendo áreas Indo ao Mediterrâneo e do Caúcaso ao Índico. Outras conquistas como o Egito e a Líbia ocorrem durante o reinado de Cambises II, que sucedeu a Ciro em 529 a.C. O Império Persachegou ao fim em 331 a.C. Os árabes axemita (dinastia da família de Maomé), conquistaram o Irã em meados do século VII, quando o califa Omar transformou o Estado nacional árabe num império teocrático mundial. No início do século XVI, Ismail (xeque safavida)proclamou-se rei e em 1510, conseguiu conquistar todo o Irã e transformou o xiismo em religião do estado.O Irã viveu sob o regime de Império teocrático até março de 1979, quando um plebiscito aprovou com 98% dos votos, a implantação da República Islâmica do Irã, e a autoridade suprema se torna Aiatolá Khomeini, que ganha o título de Aiatolá por conta de sua luta contra o xá Muhammed Reza Pahlevi em 1963. Aiatolá é o título que se dá ao penúltimo estágio na hierarquia xiita, é o líder máximo espiritual. O título deixa muitos aiatolás descontentes, pois cultuam-se apenas os doze imãs, descendentes diretos do profeta Maomé. Este período pós-revolução, onde acaba-se o Império, várias facções disputam o poder. De um lado os Aiatolás, que estavam contestes com o regime teocrático e do outro, as forças civis, que lutam por um Estado não religioso. Aiatolá Khomeini morre em 1989, após ter enfrentado fases turbulentas em seus últimos anos frente à República, como a crise com os EUA e a guerra contra o Iraque. Depois disso o Irã foi presidido por Aiatolá Sayyed Ali Khamenei e posteriormente, por Ali Akbar Hachmi Rafsandjani, ambos conservadores. Até que nas eleições de 1997, por seu discurso moderado, Sayyed Mohammad Khatami ganha a eleição à presidência. Apesar de se filho de um famoso aiatolá e usar o turbante preto daqueles que acreditam ser descendentes diretos do profeta Maomé, Khatami sempre representou politicamente uma linha mais progressista, mostrando que é perfeitamente possível conciliar os preceitos humanistas do Islamismo com uma sociedade mais livre. Alguns avanços nesse sentido já ocorriam desde 1992, quando Khatami, então Ministro da Cultura, reduziu a censura literária e criou a Fundação Farabi de Cinema. Ele é considerado o grande impulsionador do cinema iraniano.Há quatro anos, com o apoio dele, a classe cinematográfica conseguiu aprovar a lei que baixou os impostos sobre os filmes de 15% para 0,5%, permitindo um maior retorno para investimentos nas produções.Mesmo assim, a censura é rígida no Irã. Há quatro estágios no controle dos projetos de filmes iranianos. Primeiro, o roteiro deve ser aprovado por um conselho, devendo estar de acordo com os preceitos morais islâmicos; segundo, a lista dos técnicos e dos atores deve ser aprovada. Estes últimos, na maioria das vezes, são parentes dos próprios diretores, ou pessoas que viveram realmente a situação que originou a idéia do roteiro. Terceiro, o filme já pronto é mandado ao Conselho de Censura do Governo, o qual aprova, exige mudanças para liberação ou proíbe totalmente. Se aprovado, o quarto estágio é os produtores receberem permissão de exibição, com a avaliação de A, B ou C, que determina o acesso à mídia, com a definição se pode ou não ser comercializado para a tv.Apesar de no Irã existirem salas de exibição e o ingresso ser considerado bastante acessível, um amigo meu que é de Teerã, disse que as pessoas não vão muito ao cinema. A maioria delas, prefere esperar que o filme passe na tv.Os festivais internacionais de cinema são uma ótima oportunidade para os cineastas iranianos mostrarem seu trabalho e alguns plena indignação diante da repressão vivida pelo povo muçulmano. O filme "O Círculo", de Jafar Panahi, continua censurado em seu país, mesmo tendo participado de diversos festivais e ganho o Leão de Ouro em Veneza. Por tratar da temática feminina. O cinema é um espelho da sociedade que o produziu, pois nenhuma produção está livre dos condicionamentos sociais de sua época. Mas a forma como o filme reflete a sociedade não é direta, pois ele é produto de uma coletividade que nunca esconde sua subjetividade. No regime repressivo da República Islâmica do Irã, o artista é obrigado a expressar o conteúdo de sua arte através de deslocamento de discursos. Mesmo assim, nestas obras, é possível dissecar significados ocultos, buscando elementos da realidade através da ficção. Os filmes podem espelhar gesto, vestuário, língua, vocabulário, arquitetura e costumes da sua época e lugar, tanto quanto a mentalidade de sua sociedade e sua ideologia. No filme A Caminho de Kandahar, Mohsen Makhmalbaf mostra sua visão sobre a condição da mulher muçulmana e sobre a situação do Afeganistão, que vive sobre o regime fundamentalistas sunitas Islâmico. Em 1998, Makhmalbaf recebeu uma carta de uma jornalista afegã, residente no Canadá, Niloufar Pazira, que viveu no Afeganistão até completar 16 anos de idade. Nesta carta, a mulher manifestara sua preocupação diante da amiga de infância que continuara no país. Segundo o jornalista Alessandro Giannini, sua amiga "escreveu que se sentia feliz por tudo o que havia feito, mas não via sentido em continuar viva, já que não podia sair na rua livremente. Ao fim de tudo, dizia-se feliz pela amiga, que tinha uma vida inteira pela frente e deveria vivê-la pelas duas." Após receber esta carta, Niloufar, tentou ir à sua procura, mas não conseguiu entrar no país. Mesmo não conseguindo ajudar a jornalista, Makhmalbaf se apropriou de sua história e a transformou em filme.No filme, Niloufar faz o papel de Nafas (que significa respirar em farsi), jornalista que vai em busca de sua irmã que continua morando no Afeganistão e que se suicidaria no dia do último eclipse do século.Nafas, a personagem, consegue uma carona no avião da ONU até perto da fronteira. Ela consegue carona com uma família, mas o carro é roubado, forçando-a a seguir viagem sozinha. No seu longo percurso, ela cruza com grupos de pessoas, que estão levando sua vida rotineira, e que ela acaba mantendo um contato, a fim de conseguir chegar em Kandahar.O primeiro grupo é o dos estudantes, que estão aprendendo a recitar o Alcorão , para talvez se tornarem mulás um dia. Um garoto, Khor, é expulso, por não saber recitar e tenta ajudá-la em troca de dinheiro. Mas devido a água de poço, Nafas adoece e procura a ajuda de um médico. Nesta cena, as mulheres são examinadas pelo médico através de um buraco num pano. Ora elas mostram a boca, ora os olhos. E há a necessidade de um intermediário, pois um não pode falar diretamente ao outro. O médico, que também fala inglês, desrespeita a conduta imposta e a aconselha a livrar-se do guia, o garoto Khor. Assim ela o faz. O Taleban que assumiu o poder do Afeganistão, aboliu inclusive o corte de barba, e o personagem do médico, é um americano, que desiludido com a vida, vai ao Afeganistão assistir as pessoas que necessitam de ajuda. Mesmo sendo muçulmano, ele usa uma barba postiça, para poder continuar vivendo no país de acordo com as leis do Alcorão, interpretadas segundo mulá Omar, que dirige o Afeganistão. Makhmalbaf mostra um país devastado pelos conflitos entre facções religiosa e conflitos externos, onde as pessoas morrem de fome, frio , diarréia causada pelos vermes na água, ou pelas minas, que são milhares espalhadas pelo chão, algumas dentro de bonecas. Numa cena do filme, o professor fala para as estudantes meninas ficarem em suas casas, por precaução por causa das minas, e pra elas não se sentirem tão mal, imaginarem ser formigas, assim, achariam a casa maior.Enquanto as mulheres ficam em casa, os garotos aprendem a mexer nas armas, para lutar pela jihad ( que significa esforço sobre si mesmo ), também significa guerra santa em reposta a uma agressão externa. Segundo o livro Compreenda o Islam e os Muçulmanos, o Islam permite a luta em defesa própria, em defesa da religião, ou para defesa daqueles que foram expulsos à força, de seus lares. Ele impõe estritas regras de combate que incluem proibições quanto a causar danos aos civis, o destruir plantações, árvores e gado. Os Muçulmanos acham que a injustiças triunfará no mundo se boas pessoas não forem preparadas para arriscar suas vidas pela causa justa. O Alcorão diz: "Combatei pela causa de Deus àqueles que vos combatem; porém, não os provoqueis, porque Deus não estima os agressores."(2°Surata, versículo 190)Em outro trecho, "Se eles se inclinarem à paz, inclina-te também a ela e encomenda-te a Deus, porque Ele é o Oniouvinte, o Sapientíssimo."(8°Surata, versículo 61). A guerra, portanto, é o último recurso, está sujeita às rigorosas condições decretadas pela lei do Alcorão. Em um dos diálogos do filme, o médico diz que sempre é preciso uma razão pra viver. No caso dele, esta razão é a esperança. No caso das mulheres com a burca, é de um dia, poderem ser vistas.O personagem levanta uma questão delicada, que é a base do filme. A problemática da mulher Muçulmana é muito polêmica e causa controvérsias. Enquanto uns acham que elas vivem sob tamanha repressão, outros justificam falando que as mulheres tem vários direitos, como no caso do Sheik Ali Abdune, numa entrevista que ele deu à revista Caros Amigos: "O Islã restringe algumas questões pelo benefício da mulher. A vestimenta, seja num calor de 40 graus ou de 50, isso é uma opção dela. Elas usam por convicção mesmo. E por que essa vestimenta? Em respeito. O Islã acha que a mulher é um ser que deve ser respeitado, não pode ser assediado nem pelos olhos, nem pelas palavras, nem pelos movimentos. Temos um grande respeito pela mulher e esse respeito é que leva o Islã a preservar a mulher dessa maneira. Dentro da sua casa, ela tem toda a liberdade com seus íntimos de se pintar, de andar decotada, de short, de camiseta, sem roupas, o que ela quiser." Mas se uma mulher não usa, ela pode apanhar e até ir presa. Numa época em que se questionou a não obrigatoriedade do chador no Irã, as mulheres foram às ruas reclamar pelo seu uso obrigatório. O Alcorão fala que a mulher deve cobrir a cabeça. Mas no Afeganistão, o que vimos no filme é o uso da burca, que cobre o rosto inteiro da mulher, permitindo que ela só enxergue através dos furos que ficam na frente do rosto e as atrapalha até para respirar. Por isso a referência do nome Nafas para a personagem. E elas são referidas como cabeças-negras, ao invés de mulher. Um personagem fala ao outro no filme: "Olha uma cabeça-negra chegando."Uma coisa que na nossa cultura ocidental é proibido e nos países Islâmicos é permitido e está no Alcorão, é a poligamia. A maioria dos personagens do filme possuem mais do que duas mulheres. Nafas, em sua primeira carona, tem que passar por quarta esposa do homem que guia o caro, para poder seguir viagem, com ele, suas outras três mulheres e seus filhos. ao mesmo tempo que isto acontece, "Dentro do lar, ela não é obrigada a cozinhar para o marido, a lavar, a passar roupa. Os direitos dela estão no Alcorão e na doutrina do profeta Muhamad. Se ela for para qualquer sheik e falar "olha, meu marido me obriga a fazer isso e eu quero os meus direitos completos aqui na minha frente", ele os coloca e ela tem todo o direito. E o homem tem a obrigação de cumpri-los ou trazer alguém que os cumpra. Agora, se ela faz isso por espontânea vontade, por amor ao marido, isso o Islã não impede."Mesmo não sendo uma cópia fiel da realidade, o filme nos faz pensar em todas as questões que levanta, nos permite chegar mais perto do que é ou pode ser o Islam, levado a fundo pelos fundamentalistas Afegãos e da situação da mulher, que vive debaixo da burca, em pleno deserto e não pode sair de casa para evitar pisar numa mina. O que levou Makhmalbaf a fazer este filme foi sua indignação perante um regime distorcido. Não sou ninguém para julgar se o Islam é bom ou ruim, e o caso do Afeganistão é ainda mais delicado. Apenas procuro entender um pouco mais sobre os muçulmanos e o Oriente Médio através, principalmente, dos filmes iranianos, que mesmo contendo a subjetividade de toda uma equipe que o realiza, reflete pelo menos um pouco da sociedade muçulmana, mesmo através do uso de metáforas.

Bibliografia:
ABDUNE, Sheik Ali. As Leis do Islã. Revista Caros Amigos. Ano V, nº56, nov.2001.GIANNINI, Alessandro. Sob o céu do Afeganistão. Site: www.no.com.br HAYEK, Samir El. Compreenda o Islam e os Muçulmanos. Ed. Junta de Assistência Social Islâmica Brasileira. São Bernardo do Campo, São Paulo.YALE, Pat. Iran. Lonely Planet Publications, Australia, july 2001.

*Kelen Pessuto é estudante de cinema da FAAP e pesquisadora do Site Porto Alegre 2002.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial