NARRADORES DE JAVÉ
Assim arranjar-se-ão os moradores de Javé. Tudo para comprovar a máxima da diretora: o desaparecimento não passa de uma ameaça. Para isso, Eliane se valerá de dois argumentos que desfilarão tranqüilamente lado a lado por mais de cem minutos de narrativa: a própria transformação das coisas que existem, e a memória, a trazer as coisas que parecem não existir mais - fielmente ou não - ao presente.
E o filme já começa comprovando a tese. A primeira cena que se vê é a da corrida solitária de um jovem, ao cair do sol. Apesar do esforço do garoto, que a diretora faz questão que acompanhemos, acontece o primeiro desaparecimento da história: ele perde o barco, a viagem, e o dia, que em seguida anoitece. Nesse momento, - menos de dois minutos de filme - já não pensamos em outra coisa a não ser "o que acontecerá com ele?". Cineasta que é, Eliane pega o público pelo artifício que utilizará na história para provar sua tese: o prazer de uma boa história.
Pois é exatamente o que o menino perdido vai ganhar. No bar do porto, Nelson Xavier estará introduzindo a história de Javé. E o rapaz retoma então, uma viagem quem sabe muito mais promissora do que a que acabara de perder. Eliane deve estar querendo dizer que até sabe-se o que se pode perder, mas não o que se pode ganhar com a perda. Nesse caso, nós ganhamos o filme da maneira que o cinema sabe bem fazer: sutilmente algo que não é mais (a viagem do garoto), transforma-se em algo que é ainda mais (a história que ele - e nós - vamos ganhar).
Instaura-se na tela a narrativa de Javé. E a memória dos moradores deve trazer ao presente algo que está em vias de não ser mais: a própria cidade. Javé só pode ser salva se sua história for recuperada. Para isso, convoca-se alguém que saiba tornar o ordinário quotidiano em acontecimentos extraordinários. Entretanto, um ser dotado desta perspicácia é capaz de antever que o mundo apenas se move, e este simples movimento é ainda mais extraordinário que a singularidade de uma cidade fundada em cima do nada. Antes de ser o traidor de algo que desapareceria de qualquer forma, o personagem de José Dumont, disfarçadamente posto em cena por Eliane como seu porta-voz, é a consciência da mudança contingente.
Javé não pode ser a única coisa no mundo a permanecer como é para sempre, nem que para isso se justifique sua inundação. Esta inevitabilidade está no discurso de Antônio Biá quando se descobre em branco o livro no qual deveria estar escrita a história da cidade. Contudo, não é também sem dor que a transformação é aceita. O próprio vidente - Biá/Dumont - sofre com o que precisa ficar para trás para que o novo surja. E talvez seja ele o que mais sinta esta "perda", porém é também o mais consciente da nova etapa que vem. Do choro na água que assola o que fora Javé ao interesse disfarçado de cinismo que tem com seus conterrâneos, Biá é o pastor às avessas daquela comunidade. Pois detém um poder, ao inverso do que se transformou o cristão: o de clarear a vida dos seus semelhantes, que faz a todos o procurarem sob qualquer situação.
Seja trazendo as memórias do povo à tona, seja alavancando seu desaparecimento ao ganho de uma nova jornada, Biá põe na prática a argumentação da diretora. As letras que chegaram a um despovoado e formaram Javé, meteram-se numa confusão imprevisível da qual não poderão sair sendo os mesmos. Eliane, através de Biá, antes de pronunciar que isto é necessário, investe rolos de filme para dizer que preciso é aceitar as contingências da vida. Depois de provar que o passado não se perde, mas se modifica (para melhor!) através da narrativa falada, escrita ou filmada, e estabelecer justamente na "perda" a possibilidade (e inevitabilidade) de surgimento do novo, coloca seus personagens a sair andando pelo lado da tela. Embaralhados por ela na sua história, ganham da diretora a redenção de transformar-se em algo mais do que foram na perdida Javé: o desprendimento de um novo nascimento.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial